...O sopro dos vapores urbanos, galhos secos que formavam desenhos na escada, um gato asqueroso e magro sobre o telhado vizinho...
e meras lembranças, elas nunca deixavam-na só e fazia a moça sentir saudade...
...Talvez fosse o que a mantesse viva naquele lugar esquecido...
ou talvez o sopro supria sua superficial necessidade de respirar, e por isso, e só por isso, vivia.
...Por mais tóxico que fosse. No corpo, aquelas fragrâncias consumiam minutos de saúde. O que dizer então sobre a sua alma... Cada momento que lhe foi negado doía mais que os afirmativos, e eram mais profundos que flechadas, e mais desejados que chocolates durante o Natal, mais estimulantes que qualquer éter noturno...
Ela estava viva, tremendo, de leve, de puro deleite, orgulhosa de ter o medo sob controle
...Mas ainda faltava alguma coisa...
Coisa alguma sempre faltava...
Ela recuperaria o orgulho fatalmente dilacerado?
Ela se sentiria completa ao menos por um segundo ?
o telefone tocara
e estava receosa...
Correu para o armário, abriu suas portas desesperadamente, esbugalhou os olhos, não havia mais uísque, não havia mais barbitúrico, não havia mais faca, tudo fora jogado fora para impedir sua própria aniquilação num momento como aquele. Um dia, aquele telefone tocaria novamente.
...Por que ela se desesperava tanto...
O telefone não bastava ao desejo, o que mais invejava era o que não via...E nesse dia, ela só queria chorar como um poeta do passado e fumar seu cigarro na falta de absinto.
Mas era tudo que possuia. Ela própria esvaziou a casa. Aquele barulho fazia mal como todo o resto, mas ela desejava aquilo... Ai... Como nunca.
o telefone ousara tocar novamente...
Ela o fitou. Queria arremessa-lo contra a parede. Queria engoli-lo. Atendeu:
Alguém do outro lado disse... "É você ainda?".
não tinha forças, nem voz, para dizer ao menos"Alô!"
"É você ainda? Responda-me! Responda-me!".
"É você ainda" aquilo fez ela pensar...era a mesma? tomou ar e disse apenas: "existo, basta pra você?"
Um murmúrio zombeteiro do outro lado. Silêncio.
"Responda-me! Basta?"
"Não é o suficiente. Afinal, por que você ainda parece um zumbificada, vagando errante, foi algo que fiz? Você morrerá desse jeito".
"Algo que você fez?" Queria dizer-lhe tudo, mas ele só a acharia mais problemática "Não...só realizo o seu bem fazendo com que permaneças longe de mim..."
"Permanecer longe de você? O que foi aquilo na sacada, enquanto eu conversava com a bibliotecária? Eram apenas livros!".
"Você precisava fazer aquele escândalo todo? Hein?".
"Por isso disse que estou realizando o seu bem me afastando de você e te afastando de mim..."
"Aquilo não foi bem, você poderia ter caído de lá de cima, oras... Você não quer se afastar de modo algum... Isso é outra coisa".
"não quero fazer isso de novo...manterei distância...carrego comigo a placa de "PERIGO!" , você mesmo disse."
"Fazer o quê?".
"Você me ama?"
"Você e essa pergunta de novo... Não seja evasiva... Pare com isso, você está se destruindo tentando fugir de si mesma".
"Você me ama?" Dessa vez posicionara-se frente a janela, e enrolava o fio do telefone em seu pescoço...
ele podia ouvir o sopro do vento
Pierre escutou o telefone caindo do outro lado... Sentia que alguma coisa errada podia acontecer... Provavelmente Sophie estava tramando alguma coisa... "Sophie? O que você está fazendo? O que quer que eu responda?".
"Eu? Estou só tomando um ar, enquanto não o perco...quero que me diga a verdade, só..."
Pierre já havia passado por aquilo antes. Ela sempre blefava. Mas ainda havia incerteza... Ela estava especialmente seca nesses últimos meses, não estava comendo, não estava conversando, apenas olhava como se aquelas pupilas fossem botes crotalianos. Ele não queria errar. Era um jogo, óbvio. Ou não.
"Sim, Sophie, eu te amo". Ela não podia vê-lo. Ele contava com isso.
o que Sophie mais invejava era o que não via...Sabia que ele estava mentindo, foi-se o tempo em que o amor dominava, apenas disse "Obrigada por tentar, mas não disse-me o que pedi, a verdade" e atirou-se pela janela e deixou uma certeza: o telefone não tocaria mais...
Pierre escutou o barulho. Agora já era. Estava livre. Sophie também, de certa forma. Mas ele estava enganado.
Pierre colocou o telefone no gancho, lamentando-se pelo que aconteceu, mas, na sua cabeça, aquilo não era mais problema dele.
Texto escrito juntamente com um amigo muito especial, que tem minha total admiração... R.W.O.G
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